(por
Mia Couto)
Transcrevo o texto de Mia Couto,pseudônimo de António Emilio Leite Couto,biólogo e escritor moçambicano, nascido em Beira e, 5 de julho de 1955.
E é assim,criamos os filhos cheios de cuidados e depois eles não sabem o que fazer da vida.
Mas devemos continuar orientando, dando sim o suporte necessário até que eles possam seguir seus caminhos.
Está à rasca a geração dos pais que
educaram os seus meninos numa abastança caprichosa, protegendo-os de
dificuldades e escondendo-lhes as agruras da vida.
Está à rasca a geração dos filhos que
nunca foram ensinados a lidar com frustrações.
A ironia de tudo isto é que os jovens
que agora se dizem (e também estão) à rasca são os que mais tiveram tudo. Nunca
nenhuma geração foi, como esta, tão privilegiada na sua infância e na sua adolescência.
E nunca a sociedade exigiu tão pouco aos seus jovens como lhes tem sido exigido
nos últimos anos.
Deslumbradas com a melhoria
significativa das condições de vida, a minha geração e as seguintes
(actualmente entre os 30 e os 50 anos) vingaram-se das dificuldades em que
foram criadas, no antes ou no pós 1974, e quiseram dar aos seus filhos o
melhor.
Ansiosos por sublimar as suas
próprias frustrações, os pais investiram nos seus descendentes:
proporcionaram-lhes os estudos que fazem deles a geração mais qualificada de
sempre (já lá vamos...), mas também lhes deram uma vida desafogada, mimos e
mordomias, entradas nos locais de diversão, cartas de condução e 1.º automóvel,
depósitos de combustível cheios, dinheiro no bolso para que nada lhes faltasse.
Mesmo quando as expectativas de primeiro emprego saíram goradas, a família
continuou presente, a garantir aos filhos cama, mesa e roupa lavada.
Durante anos, acreditaram estes pais
e estas mães estar a fazer o melhor; o dinheiro ia chegando para comprar (quase)
tudo, quantas vezes em substituição de princípios e de uma educação para a qual
não havia tempo, já que ele era todo para o trabalho, garante do ordenado com
que se compra (quase) tudo. E éramos (quase) todos felizes.
Depois, veio a crise, o aumento do
custo de vida, o desemprego, ... A vaquinha emagreceu, feneceu, secou.
Foi então que os pais ficaram à
rasca.
Os pais à rasca não vão a um
concerto, mas os seus rebentos enchem Pavilhões Atlânticos e festivais de
música e bares e discotecas onde não se entra à borla nem se consome fiado.
Os pais à rasca deixaram de ir ao
restaurante, para poderem continuar a pagar restaurante aos filhos, num país
onde uma festa de aniversário de adolescente que se preza é no restaurante e
vedada a pais.
São pais que contam os cêntimos para
pagar à rasca as contas da água e da luz e do resto, e que abdicam dos seus
pequenos prazeres para que os filhos não prescindam da internet de banda larga
a alta velocidade, nem dos qualquercoisaphones ou pads, sempre de última geração.
São estes pais mesmo à rasca, que já
não aguentam, que começam a ter de dizer "não". É um "não"
que nunca ensinaram os filhos a ouvir, e que por isso eles não suportam, nem
compreendem, porque eles têm direitos, porque eles têm necessidades, porque
eles têm expectativas, porque lhes disseram que eles são muito bons e eles
querem, e querem, querem o que já ninguém lhes pode dar!
A sociedade colhe assim hoje os
frutos do que semeou durante pelo menos duas décadas.
Eis agora uma geração de pais
impotentes e frustrados.
Eis agora uma geração jovem altamente
qualificada, que andou muito por escolas e universidades mas que estudou pouco
e que aprendeu e sabe na proporção do que estudou. Uma geração que colecciona
diplomas com que o país lhes alimenta o ego insuflado, mas que são uma ilusão,
pois correspondem a pouco conhecimento teórico e a duvidosa capacidade
operacional.
Eis uma geração que vai a toda a
parte, mas que não sabe estar em sítio nenhum. Uma geração que tem acesso a
informação sem que isso signifique que é informada; uma geração dotada de
trôpegas competências de leitura e interpretação da realidade em que se insere.
Eis uma geração habituada a comunicar
por abreviaturas e frustrada por não poder abreviar do mesmo modo o caminho
para o sucesso. Uma geração que deseja saltar as etapas da ascensão social à
mesma velocidade que queimou etapas de crescimento. Uma geração que distingue
mal
a diferença entre emprego e trabalho,
ambicionando mais aquele do que este, num tempo em que nem um nem outro
abundam.
Eis uma geração que, de repente, se
apercebeu que não manda no mundo como mandou nos pais e que agora quer ditar
regras à sociedade como as foi ditando à escola, alarvemente e sem maneiras.
Eis uma geração tão habituada ao
muito e ao supérfluo que o pouco não lhe chega e o acessório se lhe tornou
indispensável.
Eis uma geração consumista,
insaciável e completamente desorientada.
Eis uma geração preparadinha para ser
arrastada, para servir de montada a quem é exímio na arte de cavalgar
demagogicamente sobre o desespero alheio.
Há talento e cultura e capacidade e
competência e solidariedade e inteligência nesta geração?
Claro que há. Conheço uns bons e
valentes punhados de exemplos!
Os jovens que detêm estas capacidades-características
não encaixam no retrato colectivo, pouco se identificam com os seus
contemporâneos, e nem são esses que se queixam assim (embora estejam à rasca,
como todos nós).
Chego a ter a impressão de que, se
alguns jovens mais inflamados pudessem, atirariam ao tapete os seus
contemporâneos que trabalham bem, os que são empreendedores, os que conseguem
bons resultados académicos, porque, que inveja! que chatice!, são betinhos,
cromos que só estorvam os outros (como se viu no último Prós e Contras) e, oh, injustiça!, já
estão a ser capazes de abarbatar bons ordenados e a subir na vida.
E nós, os mais velhos, estaremos em
vias de ser caçados à entrada dos nossos locais de trabalho, para deixarmos
livres os invejados lugares a que alguns acham ter direito e que pelos vistos -
e a acreditar no que ultimamente ouvimos de algumas almas - ocupamos injusta,
imerecida e indevidamente?!!!
Novos e velhos, todos estamos à
rasca.
Apesar do tom desta minha prosa, o
que eu tenho mesmo é pena destes jovens.
Tudo o que atrás escrevi serve apenas
para demonstrar a minha firme convicção de que a culpa não é deles.
A culpa de tudo isto é nossa, que não
soubemos formar nem educar, nem fazer melhor, mas é uma culpa que morre
solteira, porque é de todos, e a sociedade não consegue, não quer, não pode
assumi-la. Curiosamente,
não é desta culpa maior que os jovens
agora nos acusam.
Haverá mais triste prova do nosso
falhanço?
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