O ANJO PORNOGRÁFICO
Este é o título da obra de Ruy Castro sobre a vida de Nelson Rodrigues, grande dramaturgo brasileiro.
Ao ler o jornal de hoje (02.jan.2012) vi a matéria sobre o autor e fui apanhar na estante a obra ‘O Anjo pornográfico’, com dedicatória do amigo-irmão, ator de teatro e cinema, Édio Nunes, presente de aniversário de 7.1.1993.
Reli algumas passagens da obra, pois a mesma ficou adormecida na estante. Livro é assim, quando menos se espera, precisa-se dele, por isso nunca digo que o livro é ou está velho, sobretudo porque livro bom não envelhece. Deixa-se quieto na estante e um belo dia, voilà, eis que nos cai no colo para ser pesquisado.
Em 2012 acontecerão diversas homenagens a Nelson. Como homenagear? Com a encenação de suas peças, claro.
Tive o prazer em assistir com o Grupo Pesquisa Teatro Novo, de Florianópolis, dirigido por Carmem Fossari, a obra de Nelson “Senhora dos Afogados”, no teatrinho da UFSC. Um bom trabalho com inovação em cenário no pequeno palco do simpático teatrinho.
Então as montagens de Nelson não ficaram somente no eixo Rio-São Paulo, nós também tivemos. E uma boa montagem, diga-se de passagem, não devendo nada a grandes companhias.
Há, conforme o Jornal Notícias do Dia, de Florianópolis, com data de 02 de janeiro de 2012, proposta de encenações de ‘Vestido de Noiva’(uma revolução em cenário); ‘Senhora dos Afogados’; ‘A Serpente’; ‘A mulher sem pecado’; ‘Viúva, porém honesta’.
Nascido em Pernambuco, num lar com 14 filhos,de Mario e Maria Esther, em 23 de agosto de 1912, seu nome foi em homenagem ao almirante inglês Lord Nelson,vencedor da batalha de Trafalgar, em 1805.
Interessante o que cita Ruy Castro sobre os nascimentos e a cor dos cabelos de cada filho. O avô de Nelson, Francisco Rodrigues, “era figura conhecida no Recife, ele um corretor de imóveis e terrenos, reconhecível à distância pela barba e pelos cabelos vermelhos que lhe valiam o apelido de “Barba de fogo”. Francisco era famoso pela audácia nos negócios e pela sua desvairada militância sexual – uma obsessão que seu casamento com dona Adelaide, fina dama da sociedade local, não perturbava nem um pouco.”
Cita Ruy que Adelaide, a esposa, pesou os prós e os contras e liberou Francisco para as suas orgias sexuais, pois em casa era um pai amantíssimo e um marido generoso e deu-lhe salvo conduto pra agir como quisesse, para inveja dos outros que usavam dos mesmos subterfúgios, sem aval das esposas, claro.
Mário Rodrigues, seguindo a descendência de seu pai Francisco, teve nos seis primeiros filhos a repetição da cor dos cabelos, pela ordem de nascimento: Milton era ruivo como o avô; Roberto era moreno como o pai; Mário Filho era ruivo; Stella deveria sair morena e saiu ruiva; Nelson nasceu loiríssimo, mas com o tempo seu cabelo escureceu e tornou-se moreno, como o pai; Joffre nasceu com cabelos vermelhos.
Interessante que na minha família também foi assim: eu e meus irmãos Saulo e Jauro nascemos com cabelos vermelhos; Neusa, Azuir, Paulo e Leuzi, com cabelos pretos; Mauro com cabelos castanhos; Lauro era bem loiro quando pequeno, depois os cabelos escureceram; Zeula tinha seus cabelos com uma cor de amêndoa, nem louro nem castanho.
A taradice em Nelson Rodrigues é hereditária. Nunca negou ser neto de Barba de Fogo e aos 3 anos de idade já aprontava. Tenho um amigo assim que também deve ter herdado gens de um antepassado.
Mas voltemos ao Nelson. Aos quatro anos já foi classificado de “tarado de marca maior”. Fazia coisas de moleque: cuspia nas pessoas que passavam pela rua e descobriu que empilhando paralelepípedos poderia espiar a vizinha tomando banho, coisa que viu muitas vezes. Sabia a diferença dos corpos masculinos e femininos.
Apesar de tudo era um menino que não dizia palavrões e não disputou com os amigos quem fazia xixi mais longe e nem comparava seu órgão genital com os dos outros meninos.
Aos oito anos de idade sua professora, dona Amália, pediu aos alunos que escrevessem uma redação e a melhor seria lida em classe. A de Nelson versou sobre adultério. “O marido chega de surpresa em casa, entra no quarto, vê a mulher nua na cama e o vulto de um homem pulando pela janela e sumindo na madrugada. O marido pega uma faca e liquida a mulher. Depois ajoelha-se e pede perdão.”
Adultério era coisa corriqueira na rua em que morava, com a vizinhança tomando conta da vida uns dos outros.
O fato inusitado é que o precoce menino ousou colocar isto em uma redação escolar. Ao final, a outra redação foi lida e a de Nelson não, mas no fundo ele teve a satisfação de ter sido ele o vencedor.
Creio que este fato em sua vida lhe deu background para suas peças que sempre tem um quê de sexualidade.
E assim Ruy Castro vai tecendo a vida deste homem inteligente, excelente escritor, dramaturgo, contista, jornalista e, principalmente, torcedor do Fluminense.
Em 1951 Nelson foi convidado por Samuel Weiner para trabalhar no Ultima Hora. Foi ali que começaram as crônicas “A vida como ela é...”, coluna diária sobre fato real da atualidade. Nesta época na rua onde morava havia um sujeito notoriamente sonso que era tratado como um cão pela mulher. Um dia cansado disso, deu uma surra nela em plena via pública. A mulher depois de apanhar, caiu de beijos e abraços no marido e e ao ouvir os comentários das vizinhas que estavam torcendo para a mulher apanhar mais, disse “Toda mulher gosta de apanhar”. Esta frase saiu na crônica e tornou-se popular e perseguiu sua vida a ponto de receber brincadeiras de muita gente.
Outras frases de Nelson: “toda unanimidade é burra”; “tenho inveja da burrice, pois ela é eterna”.
Ah, Nelson também protagonizou como o avô cenas de adultério. Não podia negar a descendência, afinal lembrem-se da precocidade dele.
Muito poderia contar de Nelson. Deixo, porém, a indicação para que leiam a obra de Ruy Castro “O anjo pornográfico”.
Fico por aqui, citando as peças de teatro deste “tarado de suspensórios” como o chamavam. Aproveito que tenho o livro citado, dando a relação com as datas, omitindo nomes dos atores e diretores, citando apenas o teatro da primeira encenação. Segue:
A mulher sem pecado (1941), Teatro Carlos Gomes; Vestido de noiva (1943), Teatro Municipal; Álbum de família (1946), Teatro Jovem; Anjo negro (1947), Teatro Popular de Arte; Senhora dos Afogados (1947), Companhia Dramática Nacional; Dorotéia (1949), Teatro Phoenix; Valsa nº 6 (1951), Teatro Serrador; A falecida (1953), Companhia Dramática Nacional; Perdoa-me por me traíres (1957), Teatro Municipal; Viúva, porém honesta (1957), Teatro São Jorge; Os sete gatinhos (1958), Teatro Carlos Gomes; Boca de ouro (1959), Teatro Nacional de Comédia; Beijo no asfalto (1960), Sociedade “Teatro dos sete”; Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária (1962); Toda nudez será castigada (1965), Teatro Serrador; Anti-Nelson Rodrigues (1973), Teatro do SNT; A serpente (1978), Teatro do BNH.
Também a relação das obras.
Segue: Teatro-“Teatro completo”,organização de Sábato Magaldi; Romances -“Meu destino é pecar”(1944); “Escravas do amor”(1944); “Minha vida”(1946); “Núpcias de fogo”, inédito em livro(1948); “A mulher que amou demais”, inédito em livro(1949); “O homem proibido”(1951); “A mentira”,inédito em livro(1953); “Asfalto selvagem”,dois volumes(1959-60); “O casamento”(1966). Contos – ‘Cem contos escolhidos: A vida como ela é...’(1961), dois volumes; ‘Elas gostam de apanhar’(1974). Crônicas – ‘Memórias de Nelson Rodrigues’(1967); ‘O óbvio ululante’(1968); ‘A cabra vadia’(1970); ‘O reacionário’(1977). Novelas de TV – ‘A morta sem espelho’,TV Rio(1963); ‘Sonho de amor’, TV Rio(1964); ‘O desconhecido’, TV Rio(1964). Filmes – ‘Somos dois’(1950); ‘Meu destino é pecar’(1952); ‘Mulheres e milhões’(1961); ‘Boca de ouro’(1962 e 1990); ‘Meu nome é Pelé’(1963); ‘Bonitinha, mas ordinária’(1963 e 1980); ‘Asfalto selvagem’(1964); ‘A falecida’(1965); ‘O beijo’(1966); ‘Engraçadinha depois dos trinta’(1966); ‘Toda nudez será castigada’(1973); ‘O casamento’(1975); ‘A dama do lotação’(1978); ‘Os sete gatinhos’(1980); ‘O beijo no asfalto’(1980); ‘Álbum de família’(1981); ‘Engraçadinha’(1981); ‘Perdoa-me por me traíres’(1983).
“Nelson morreu poucos minutos antes das oito da manhã do dia 21 de dezembro de 1980, um domingo. No fim da tarde daquele dia ele faria treze pontos na loteria esportiva, num “bolo” com seu irmão Augustinho e alguns amigos de “O Globo”.(...)Na madrugada de 21 de dezembro,ele resistira a sete paradas cardíacas.(...)Nelson morrera a poucos dias do Natal, uma data que, para ele, transcendia profundamente a vulgaridade das folhinhas e das promoções das lojas de varejo.”
Em uma crônica em O Globo, a respeito do assunto escreveu, como estivesse fazendo uma oração, nosso anjo pornográfico escreveu:
“Escrevo à noite. Vem na aragem noturna um cheiro de estrelas. E, súbito, eu descubro que estou fazendo a vigília dos pastores. Aí está o grande mistério. A vida do homem é essa vigília e nós somos eternamente os pastores. Não importa que o mundo esteja adormecido. O sonho faz quarto ao sono. E esse diáfano velório é toda a nossa vida. O homem vive e sobrevive porque espera o Messias. Neste momento, por toda a parte, onde quer que exista uma noite, lá estarão os pastores – na vigília docemente infinita. Uma noite. Ele virá. Com suas sandálias de silêncio entrará no quarto da nossa agonia. Entenderá nossa última lágrima de vida.”(in Ruy Castro, pag. 420)
Como se disse de Getúlio Vargas, posso também dizer de Nelson: “saiu da vida e entrou para a história”, a história do teatro, a história da crônica jornalística,enfim, a história da literatura e da dramaturgia brasileira.
Maura Soares, aos 02 de janeiro de 2012, 13.35h, verão.