quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Uma crônica da rua onde nasci,na Ilha de Santa Catarina. Apaixonada por minha terra,vejo-a sendo lapidada,destroçada,abandonada. O texto já foi publicado na Revista Ágora e no Boletim da Comissão Catarinense de Folclore

(da internet) fico devendo a foto da rua que possuo nos meus alfarrábios
NA RUA DA PEDREIRA(*)

            Na Rua da Pedreira, onde nasci, carros não passavam, então, a brincadeira era livre. Casas geminadas, à moda açoriana. Muitas vezes, quando as vozes vizinhas se alteravam, poder-se-ia ouvi-las através das paredes de estuque e tijolos.
            Residiam, além dos Soares – minha família -, os Silva Furtado, os Bastos, os Vieira, os Sobierajski dos Santos, os Zilli, os Ligocki, e outras três famílias que, neste momento, não recordo os sobrenomes.
            Pela rua passavam os romeiros da Procissão dos Passos, encurtando o caminho, pois a procissão seguia da Irmandade/Hospital de Caridade pela Rua Tiradentes e, como esta era e ainda é estreita, os fiéis  cortavam caminho pela Victor Meirelles – esquina da Rua da Pedreira - , em direção à Catedral Metropolitana, onde aconteceria o ato litúrgico.
            Muitas vezes ficava eu à porta de casa apreciando aquela procissão paralela a subir nas pedras da rua.
            Como era imprópria para carros, todos que por ali passavam o faziam a pé, dando assim oportunidade de se cumprimentarem e falarem uns com os outros nem que fosse sobre o tempo. Os eventuais carros que se atreviam a passar, só chegavam até minha casa. Tinham que fazer o retorno em direção à Avenida Hercílio Luz. O único que se atreveu a descer as pedras motorizado foi o Juancito Ganzo. Mas isto já é outra história.
            Por ali também passavam os vendedores ambulantes, tanto os que vendiam legumes e verduras – com cestos suspensos em varas aos ombros – quanto os que vendiam broas, biscoitos, bom-bocados (doce com côco), puxa-puxa(caramelo queimado com açúcar) e canja-americana(uma espécie de bala de cor amarela – uma delícia!)
            A Rua da Pedreira era uma gostosura para a gurizada. Meninas e rapazes, sem nenhum preconceito, brincavam de correr, de pega-pega, subir em árvores da avenida, pegar piava no canal da Hercílio Luz, mocinho e bandido, cinco-marias, bola de vidro, arremesso de tampa de garrafa, taco (uma variação do beisebol) e, naturalmente, futebol, numa cordialidade que, às vezes, acabava em sopapos, mas, em seguida, a paz renascia.
            Perto, na Rua Tiradentes, ficava a Padaria Moritz e, nos fundos dela, a Fábrica de Balas Rocôco. Lembro-me do incêndio na fábrica, não sei precisar a data. Os vizinhos e nós ajudamos a guardar as latas com as balas salvas do incêndio, impedindo com isso o saque. Não me recordo de termos sido recompensados pelos Moritz desse gesto de solidariedade. Uma prima de minha mãe, a “Bêga”, trabalhava na seção de embalagens e, essa sim, sempre trazia balas para nós.
            Balas Rocôco! Como eram gostosas, com côco e cobertas de chocolate! Além das balas Rocôco, também saboreávamos umas balas azedinhas em forma de lua, sabor laranja. Só em pensar dá água na boca!
            O trecho da Rua da Pedreira, onde nasci, só tinha um lado com casas. O outro lado era tomado pela construção do 5º Distrito Naval. Hoje abriga uma repartição federal. A rua ainda é interrompida pelo canal da Avenida Hercílio Luz e continua até a Avenida Mauro Ramos, com casas ou edifícios em ambos os lados.
            Minha casa era a segunda da rua. Porta e janela fronteiras. Um corredor não muito estreito ligava a sala de entrada aos outros cômodos. A sala principal foi dividida e ali meus pais dormiam quando a família começou a aumentar. No quarto seguinte as meninas, três a princípio, e no outro, o dos rapazes, cinco à época em que me recordo para início desta narrativa – ano de 1954. O quarto das meninas, com camas individuais e o dos meninos, com beliche, para melhor acomodação.
            A sala de jantar. Ah, a sala de jantar! Era o lugar dos encontros, local onde se discutia política, arte, os últimos acontecimentos familiares e sociais, a recepção aos parentes. Uma cadeira de balanço ao lado do rádio marca ABC. À mesa todos se sentavam em um banco comprido, de um lado, em cadeiras, de outro, a fim de caber toda a família. O almoço era partilhado, a comida dividida irmanamente. Operário da Força e Luz (depois Elffa, depois Celesc), somente meu pai sustentava a família. O orçamento doméstico era complementado com as costuras que minha mãe fazia para fora.
            Uma cristaleira em um canto com um vidro de cristal jateado e ornado de flores, em que a louça comum ficava ao lado dos poucos cristais e porcelanas. Naquela época podia-se comprar! A água para beber era colocada em um filtro de louça. O fogão, a lenha, depois substituído por um a gás. Lembro-me da carne assada de panela que minha mãe preparava no fogão a lenha.
            Revejo meu pai acomodado na cadeira de balanço a ouvir o noticiário das 22 horas da Rádio Tupi, do Rio de Janeiro. Uma voz vibrante encerrava o programa com texto de Rui Barbosa: “A Pátria não é ninguém; são todos e cada qual tem no seio dela o mesmo direito à idéia...”
            Lembro-me quando, com 11 anos de idade, já deitada para dormir, pois tinha que acordar cedo para ir à escola – já estava na 1ª. série do ginasial -, escutei, naquela noite de agosto de 1954, o noticiário sobre o suicídio de Getúlio Vargas, “o presidente dos trabalhadores”, como muitos diziam. A notícia chocou meu pai e todos fomos solidários com ele. Pouco entendia, à época, o acontecido. Revejo agora na minha lembrança e analiso este que foi um fato marcante para a política brasileira, até hoje sendo lembrado e estudado.
            Nossa casa era o lugar de acolhida dos parentes que vinham do interior para se tratarem com os médicos da Capital. Era um fato: se algum parente viesse à Florianópolis, mesmo que a passeio, e não fosse em minha casa, é como se não tivesse visitado a cidade.
            No verão, a vizinhança se reunia nas calçadas. Colocavam cadeiras e ali ficavam a conversar. O Terno-de-Reis e a brincadeira do Boi-de-Mamão eram apreciados. A comemoração do Carnaval, para nós, era fácil. Assistíamos ao desfile das escolas e blocos (Protegidos, Copa Lord, Bloco da Escola de Aprendizes de Marinheiros, Bororós) e dos carros alegóricos e de mutação dos Tenentes do Diabo e Granadeiros da Ilha, sem ficarmos horas esperando.
            Munidos de cadeiras para melhor apreciar, quando ouvíamos o batuque da primeira escola que faria o percurso ao redor da Praça XV de Novembro, dirigíamo-nos à festa. Esse período do Carnaval, dos anos 50 a 60, foi, a meu ver, o melhor que eu pude assistir. Hoje em dia assisto 5 a 10 minutos pela televisão, e já acho muito.
            Em 1956 e 1958 nasceram os meus irmãos caçulas. A família ficou assim: pai, mãe, quatro mulheres e seis homens. Minha mãe ainda engravidaria de um outro menino, porém, ao atender uma menina vizinha que havia contraído varicela, pegou o vírus e o bebê nasceu morto.
            Superadas as dificuldades que toda família de classe remediada enfrenta, todos nós estudamos e nos formamos em faculdade, menos um que fez somente o segundo grau. Porém este custeou o estudo do filho mais velho, que já é odontólogo e exerce a profissão em Tijucas. O filho do meio graduar-se-á em Comércio Exterior.
            Por termos sido criados e morarmos na Rua da Pedreira – até 1969 – quando, então, em dezembro desse ano, nos mudamos para o Bairro Abraão, não sofremos o estresse de rua movimentada e pudemos usufruir livremente do espaço para as brincadeiras, pernas raladas nas pedras e areão. Pudemos sentir a cordialidade dos vizinhos, as conversas, o auxílio quando em época de doença ou precisão material, ou seja, a camaradagem de todos.
            Enfim, vivi numa época boa de Florianópolis, em que um vizinho era valorizado não pelo que possuía em bens materiais, mas pelo carinho e apoio que sempre entregava aos semelhantes.
            Viver na Rua da Pedreira foi marcante.
            Pena que o progresso acaba com estes valores.
Maura Soares
Membro emérito do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina e Presidente do Grupo de Poetas Livres (gestão 2000/2002)
Florianópolis, 23 de maio de 2000              
(*) Rua da Pedreira como era chamada a Rua General Bittencourt. A autora nasceu no número 24, no ano de 1943 e ali viveu até o ano de 1969.

(**)Publicado na Revista Ágora, da Associação de Amigos do Arquivo Público do Estado de Santa Catarina, Ano XV, n. 31, 1º. Semestre de 2000,  pág.7.

Um comentário:

  1. Maura !!! Não tens ideia de como te admiro !! Leio sobre você...leio seus trabalhos sempre.
    Pareço estar distante ,mas nem inajinas o quanto estou presente em sua empreitada. um abraço carinhoso
    vera portella

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