Na Rua da Pedreira, onde nasci, carros não passavam, então, a brincadeira era livre. Casas geminadas, à moda açoriana. Muitas vezes, quando as vozes vizinhas se alteravam, poder-se-ia ouvi-las através das paredes de estuque e tijolos.
Residiam, além dos Soares – minha família -, os Silva Furtado, os Bastos, os Vieira, os Sobierajski dos Santos, os Zilli, os Ligocki, e outras três famílias que, neste momento, não recordo os sobrenomes.
Pela rua passavam os romeiros da Procissão dos Passos, encurtando o caminho, pois a procissão seguia da Irmandade/Hospital de Caridade pela Rua Tiradentes e, como esta era e ainda é estreita, os fiéis cortavam caminho pela Victor Meirelles – esquina da Rua da Pedreira - , em direção à Catedral Metropolitana, onde aconteceria o ato litúrgico.
Muitas vezes ficava eu à porta de casa apreciando aquela procissão paralela a subir nas pedras da rua.
Como era imprópria para carros, todos que por ali passavam o faziam a pé, dando assim oportunidade de se cumprimentarem e falarem uns com os outros nem que fosse sobre o tempo. Os eventuais carros que se atreviam a passar, só chegavam até minha casa. Tinham que fazer o retorno em direção à Avenida Hercílio Luz. O único que se atreveu a descer as pedras motorizado foi o Juancito Ganzo. Mas isto já é outra história.
Por ali também passavam os vendedores ambulantes, tanto os que vendiam legumes e verduras – com cestos suspensos em varas aos ombros – quanto os que vendiam broas, biscoitos, bom-bocados (doce com côco), puxa-puxa(caramelo queimado com açúcar) e canja-americana(uma espécie de bala de cor amarela – uma delícia!)
A Rua da Pedreira era uma gostosura para a gurizada. Meninas e rapazes, sem nenhum preconceito, brincavam de correr, de pega-pega, subir em árvores da avenida, pegar piava no canal da Hercílio Luz, mocinho e bandido, cinco-marias, bola de vidro, arremesso de tampa de garrafa, taco (uma variação do beisebol) e, naturalmente, futebol, numa cordialidade que, às vezes, acabava em sopapos, mas, em seguida, a paz renascia.
Perto, na Rua Tiradentes, ficava a Padaria Moritz e, nos fundos dela, a Fábrica de Balas Rocôco. Lembro-me do incêndio na fábrica, não sei precisar a data. Os vizinhos e nós ajudamos a guardar as latas com as balas salvas do incêndio, impedindo com isso o saque. Não me recordo de termos sido recompensados pelos Moritz desse gesto de solidariedade. Uma prima de minha mãe, a “Bêga”, trabalhava na seção de embalagens e, essa sim, sempre trazia balas para nós.
Balas Rocôco! Como eram gostosas, com côco e cobertas de chocolate! Além das balas Rocôco, também saboreávamos umas balas azedinhas em forma de lua, sabor laranja. Só em pensar dá água na boca!
O trecho da Rua da Pedreira, onde nasci, só tinha um lado com casas. O outro lado era tomado pela construção do 5º Distrito Naval. Hoje abriga uma repartição federal. A rua ainda é interrompida pelo canal da Avenida Hercílio Luz e continua até a Avenida Mauro Ramos, com casas ou edifícios em ambos os lados.
Minha casa era a segunda da rua. Porta e janela fronteiras. Um corredor não muito estreito ligava a sala de entrada aos outros cômodos. A sala principal foi dividida e ali meus pais dormiam quando a família começou a aumentar. No quarto seguinte as meninas, três a princípio, e no outro, o dos rapazes, cinco à época em que me recordo para início desta narrativa – ano de 1954. O quarto das meninas, com camas individuais e o dos meninos, com beliche, para melhor acomodação.
A sala de jantar. Ah, a sala de jantar! Era o lugar dos encontros, local onde se discutia política, arte, os últimos acontecimentos familiares e sociais, a recepção aos parentes. Uma cadeira de balanço ao lado do rádio marca ABC. À mesa todos se sentavam em um banco comprido, de um lado, em cadeiras, de outro, a fim de caber toda a família. O almoço era partilhado, a comida dividida irmanamente. Operário da Força e Luz (depois Elffa, depois Celesc), somente meu pai sustentava a família. O orçamento doméstico era complementado com as costuras que minha mãe fazia para fora.
Uma cristaleira em um canto com um vidro de cristal jateado e ornado de flores, em que a louça comum ficava ao lado dos poucos cristais e porcelanas. Naquela época podia-se comprar! A água para beber era colocada em um filtro de louça. O fogão, a lenha, depois substituído por um a gás. Lembro-me da carne assada de panela que minha mãe preparava no fogão a lenha.
Revejo meu pai acomodado na cadeira de balanço a ouvir o noticiário das 22 horas da Rádio Tupi, do Rio de Janeiro. Uma voz vibrante encerrava o programa com texto de Rui Barbosa: “A Pátria não é ninguém; são todos e cada qual tem no seio dela o mesmo direito à idéia...”
Lembro-me quando, com 11 anos de idade, já deitada para dormir, pois tinha que acordar cedo para ir à escola – já estava na 1ª. série do ginasial -, escutei, naquela noite de agosto de 1954, o noticiário sobre o suicídio de Getúlio Vargas, “o presidente dos trabalhadores”, como muitos diziam. A notícia chocou meu pai e todos fomos solidários com ele. Pouco entendia, à época, o acontecido. Revejo agora na minha lembrança e analiso este que foi um fato marcante para a política brasileira, até hoje sendo lembrado e estudado.
Nossa casa era o lugar de acolhida dos parentes que vinham do interior para se tratarem com os médicos da Capital. Era um fato: se algum parente viesse à Florianópolis, mesmo que a passeio, e não fosse em minha casa, é como se não tivesse visitado a cidade.
No verão, a vizinhança se reunia nas calçadas. Colocavam cadeiras e ali ficavam a conversar. O Terno-de-Reis e a brincadeira do Boi-de-Mamão eram apreciados. A comemoração do Carnaval, para nós, era fácil. Assistíamos ao desfile das escolas e blocos (Protegidos, Copa Lord, Bloco da Escola de Aprendizes de Marinheiros, Bororós) e dos carros alegóricos e de mutação dos Tenentes do Diabo e Granadeiros da Ilha, sem ficarmos horas esperando.
Munidos de cadeiras para melhor apreciar, quando ouvíamos o batuque da primeira escola que faria o percurso ao redor da Praça XV de Novembro, dirigíamo-nos à festa. Esse período do Carnaval, dos anos 50 a 60, foi, a meu ver, o melhor que eu pude assistir. Hoje em dia assisto 5 a 10 minutos pela televisão, e já acho muito.
Em 1956 e 1958 nasceram os meus irmãos caçulas. A família ficou assim: pai, mãe, quatro mulheres e seis homens. Minha mãe ainda engravidaria de um outro menino, porém, ao atender uma menina vizinha que havia contraído varicela, pegou o vírus e o bebê nasceu morto.
Superadas as dificuldades que toda família de classe remediada enfrenta, todos nós estudamos e nos formamos em faculdade, menos um que fez somente o segundo grau. Porém este custeou o estudo do filho mais velho, que já é odontólogo e exerce a profissão em Tijucas. O filho do meio graduar-se-á em Comércio Exterior.
Por termos sido criados e morarmos na Rua da Pedreira – até 1969 – quando, então, em dezembro desse ano, nos mudamos para o Bairro Abraão, não sofremos o estresse de rua movimentada e pudemos usufruir livremente do espaço para as brincadeiras, pernas raladas nas pedras e areão. Pudemos sentir a cordialidade dos vizinhos, as conversas, o auxílio quando em época de doença ou precisão material, ou seja, a camaradagem de todos.
Enfim, vivi numa época boa de Florianópolis, em que um vizinho era valorizado não pelo que possuía em bens materiais, mas pelo carinho e apoio que sempre entregava aos semelhantes.
Viver na Rua da Pedreira foi marcante.
Pena que o progresso acaba com estes valores.
Maura Soares
Membro emérito do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina e Presidente do Grupo de Poetas Livres (gestão 2000/2002)
Florianópolis, 23 de maio de 2000
(*) Rua da Pedreira como era chamada a Rua General Bittencourt. A autora nasceu no número 24, no ano de 1943 e ali viveu até o ano de 1969.
(**)Publicado na Revista Ágora, da Associação de Amigos do Arquivo Público do Estado de Santa Catarina, Ano XV, n. 31, 1º. Semestre de 2000, pág.7.
Maura !!! Não tens ideia de como te admiro !! Leio sobre você...leio seus trabalhos sempre.
ResponderExcluirPareço estar distante ,mas nem inajinas o quanto estou presente em sua empreitada. um abraço carinhoso
vera portella