domingo, 31 de julho de 2011

Inspiração num domingo frio, com garoa.

        
NA ESQUINA, NO TERCEIRO ANDAR

            Vivia só, na esquina, no 3º. Andar.
            Quieta, só com seus sonhos, suas angústias,seus demônios,ela se quedava.
            Saía nas caminhadas matinais, procurando lugares onde árvores, areias e águas estivessem para poder ter algo belo a contemplar.
            Poucas pessoas do bairro lhe falavam, pois não queria mais as gentes metidas em sua vida.
            Havia um passado a expurgar e ela só queria se desfazer dele.
            O dia em que isso viesse a acontecer talvez ela voltasse a sorrir como no passado em que a casa da família era só alegria, música e encantamento.
            Nesse dia em que na janela da esquina do 3º.andar contemplava a chuva sem poder sair, rememorou o momento da tragédia que havia desencadeado a sua infinita tristeza.
            A festa rolava desde a manhã na casa da família. Casa que havia sido construída pelo patriarca em meio a um bosque, onde um rio de águas cristalinas passava encantando com o som de suas águas e alimentando as festas com seus peixes.
            Em meio às arvores e debaixo delas ela gostava de sentar e sobre as folhas de outono caídas, deitava-se às vezes com um livro para ler ou apenas ficar esquecida contemplando as copas das árvores e divagando com o som do rio.
            Pois fora ali mesmo debaixo daquelas árvores à beira do rio que entregara-se pela primeira vez ao amor.
            Naquele dia em que o vira pela primeira vez pensara ser uma aparição posta ali pelas fadas do bosque para lhe tentar.
            À procura de terras para comprar ele passeava pela beira do rio e no momento em que seus olhos se encontraram, um forte rubor teve e  baixou os olhos.
            Ele aproximou-se e disse-lhe para não ter medo que não lhe faria nenhum mal.      Apresentou-se, conversaram, especulou sobre o que queria e ela após se certificar que realmente ele nada de mal lhe faria, levou-o até seu pai e a partir daí começaram as tratativas pelas terras.
            O forasteiro foi embora com a promessa de voltar nos dias seguintes.
            E os dias seguintes aconteceram.
            Sem saber nada de seu passado a ele entregou-se pela primeira vez na relva da beira do rio.
            Um desejo carnal alucinante tomou conta dos dois e sempre que se encontravam entregavam-se ao desejo. Ela não concebia a vida sem ele.
            Sem querer saber de sua história, movida pela paixão e amor, uniu-se a ele em casamento, pois ele havia adquirido as terras ao lado das de seu pai e ali o casal se estabeleceu.
            Da força do destino ninguém escapa e o destino também a encontrou.
            Dois anos de um amor intenso pensando ser para a eternidade, de repente esfriou.
            Sem saber o motivo, questionava a mudança.
            Como toda mulher seu sexto sentido a alertava sobre o que poderia estar dando errado. Possuíam uma bela casa, um local aprazível, um filho a acalentar, os negócios indo bem, sem problemas financeiros.
            Ninguém foge de seu destino e não há fortuna, por maior que seja, que apague o passado.
            E assim foi.
            Na beira do rio ela, com o filho no berço, afastou-se da festa de aniversário do patriarca para meditar. Sob a árvore onde havia amado seu homem pela primeira vez, sentiu um frio na espinha embora o dia estivesse ensolarado e o som da alegria da família se propagava até onde estava.
            Sem saber de onde, dois homens e uma mulher aproximaram-se dela e perguntaram pelo marido dizendo ser parentes dele vindos de outra cidade.
            Ingenuamente ela disse que ele estava na festa de seu pai.
            No ar, porém,  ela farejou que algo terrível aconteceria. Pegou o bebê logo após os forasteiros se afastarem e tomou um atalho até à  casa.
            Não conseguiu chegar a tempo,  pois perto da festa ouviu os gritos e tiros sendo disparados.
            Instintivamente largou o bebê na relva e correu até onde, em uma poça de sangue, jazia seu amado.
            Ninguém ousava mexer-se, aterrorizados que estavam com a violência.
            Ajoelhou-se perto dele, abraçou o corpo adorado e ele ainda com um fio de vida, olhou para ela dizendo “perdão querida, eles vieram cobrar o que eu devia; não faça nada”; e a luz apagou-se de seus olhos.
            Sem entender, entre soluços e gritos perguntando quem eram eles e porque havia feito aquilo, um dos homens respondeu: “viemos cobrar a desgraça que ele fez à nossa família; somos ciganos e ciganos não perdoam traição. Ele deflorou nossa irmã menor, depois a outra irmã e fugiu escondendo-se aqui. Agora, pagou o mal que fez e o mal paga-se com sangue. Como cigano ele sabia que mais cedo ou mais tarde o final seria este.”
            Dirigindo-se à família, convidados e a ela, disse “não tente nada contra nós, pois poderemos machucar seu filho e isto não queremos. Apesar de tudo seu bebê é também um cigano como nós”.
            Os homens guardaram as armas e só nesse momento, em meio às lágrimas ela notou a mulher, a bela mulher que com o rosto marcado também pela dor, contemplava o corpo do ex-amado estendido no chão.
            O tempo passou.
            Seu filho cresceu e desenvolveu-se. Ela mudou-se para a cidade com ele, mas manteve as terras e os negócios.
            Um dia o filho sabedor de suas raízes, foi procurar saber dos parentes de seu pai, visitando o acampamento sempre que possível. Não guardou rancor em seu coração perdoando a atitude que fora movida pela cultura e tradição de seu povo.
            Aproveitava suas viagens e ia à beira do rio ouvir o som que sentia desde sua infância.
            Ela, a mãe, nunca mais retornou ao bosque.
            Seus dias de felicidade haviam acabado.
            Agora, sozinha, na janela do 3º.andar ela chora  e as lágrimas da chuva,  misturam-se as suas lágrimas denunciando sua infinita tristeza.

            Maura Soares, aos 30 de julho de 2011, domingo, 08.25h

Nenhum comentário:

Postar um comentário