quinta-feira, 14 de julho de 2011

Coisas de sociedade que, em muitas ocasiões, devem permanecer nelas. Abaixo, um conto meu de 2009.



A MULHER DO JUIZ

            Arquibaldo Nogueira dos Santos Ferreira e Silva, de ascendência portuguesa, Juiz de 1ª. Instância na cidade de Cambucari, São Paulo, era um homem temente a Deus, mas severo em suas sentenças.
            Dizia que roubar uma galinha ou um banco, o delito era o mesmo e a pena, guardadas as proporções, era imputada ao infrator. Tanto fazia ser filho de nobre ou pobre, não favorecia ninguém.
            Era homem temido e respeitado. Mais temido que respeitado, diga-se de passagem.
            O povo da pequena cidade falava à boca pequena, da vida particular do Juiz, embora em sociedade nada se transparecia.
            A família do Juiz tinha vindo para o Brasil com a família real portuguesa em 1808, quando D.João VI, fugido de sua terra para cá trouxe, além da corte que nada produzia, alguns melhoramentos visíveis até hoje na economia brasileira.
            Pois bem, Arquibaldo, já com seus 35 anos, ainda solteiro, com promissora carreira na magistratura, incomodava a família que o queria ver casado e continuador da linhagem dos Nogueira dos Santos Ferreira e Silva.
            Acontece que até os 35 anos, ao iniciar sua vida como Juiz, Arquibaldo não havia se interessado por rapariga nenhuma.
            A mãe, Maria Engracia, não se conformava, pois seus irmãos que haviam ficado em Portugal já eram avós e ela, nada.
            Certo dia, após o filho chegar em casa, após um dia exaustivo no Fórum, resolveu colocar o seu único rebento contra a parede, dando-lhe um ultimato para que escolhesse entre as mocinhas casadoiras, de boa família, claro, da cidade ou de Portugal, para casar e lhe dar os netos tão sonhados.
            Ambos foram para a ampla biblioteca da casa, lugar aconchegante e reservado, longe dos ouvidos curiosos da criadagem.
            Arquibaldo, de frente para a mãe, que o olhava severamente, baixou a cabeça e em voz sumida, pois além de amar sua genitora, tinha por ela o maior respeito, disse:
            -Não posso me casar, querida mãezinha.
            A frase foi como um murro no estômago da mãe.
            Ela levantou-se, fechou cortinas, janelas e trancou a porta e, em voz alterada, retrucou:
            -O quê? Como não podes te casar? Não tens dinheiro suficiente? Não tens posição na sociedade? O que há contigo? Estás doente? Ahn, me responde!
            Arquibaldo, com as faces pálidas, suando frio, balbuciou em voz quase inaudível:
            -Eu não aprecio mulheres, mãezinha.
            Esta afirmação, vinda de seu único filho, sangue do seu sangue, carne de sua carne, um magistrado respeitado, fez com que Maria Engrácia se sentasse(havia ficado de pé ao fechar as cortinas e parado ante uma prateleira abarrotada de livros jurídicos).
            Ela pegou seu lencinho perfumado, levou-o ao nariz e aspirou, numa vã tentativa de acalmar-se.
            Seu coração começou a palpitar. Fazendo um esforço sobre-humano, Maria Engrácia falou:
            -Quero que tu repitas isto para eu ter certeza de que não estou louca e que ouvi direito.
            Ainda de cabeça baixa, sem poder enfrentar o olhar da mãe, o austero juiz, aquele que não perdoava ninguém colocando na cadeia quem quer que fosse, juntou todas as forças e, ainda sem levantar a cabeça, repetiu:
            -Eu não aprecio mulheres, elas não me fazem palpitar, mãezinha, ao contrário dos delfins que ajudam no Fórum. Mãezinha, perdoe-me, mas eu sempre fui assim, a senhora é que nunca percebeu.
            Maria Engrácia levantou-se e como era do seu feitio enérgico, pois comandava uma casa com diversos cômodos e muitos empregados, postou-se atrás da cadeira do filho, colocou a mão no seu ombro, vaticinando:
            -Que este assunto não saia desta sala. Teu pai jamais saberá, mas tu vais casar e a partir de amanhã, começarei a providenciar um baile, uma festa, não sei, aqui em casa e tu vais escolher uma mulher para casar. E olha bem, com ela tu vais ter nem que seja um filho, seja homem ou mulher. Eu quero alguém para embalar na minha velhice.  Quanto ao teu gostar ou não gostar de mulher, não me interessa. Quando a criança estiver no meu colo, farás da tua vida o que quiseres. Podes te mudar para o Rio e ficar naquela cidade depravada ou ir embora para Paris, tanto faz. Não quero um filho maricas nesta casa. A partir de hoje, em vez de vir direto para casa após o Fórum, passa num café, toma uma cerveja, um vinho, sei lá, mas vê bem, em lugares onde tenham homens e mulheres. Tu vais te associar com todos. Ouviu bem?
            -Sim, balbuciou Arquibaldo, sem argumentos para retrucar as palavras proféticas da mãe.
            -Que o que te disse agora morra por aqui. Agora, vai tomar teu banho e vamos jantar que teu pai logo chega e eu depois vou começar os preparativos da festa.
            ...E assim aconteceu.
            O baile, a apresentação das moçoilas, a corte a uma delas e o casamento. Arquibaldo escolheu, das muitas que a mãe lhe apresentou, a filha de rico comerciante, de origem libanesa, mas perfeitamente integrada aos costumes cristãos da família. Agnes, cabelos negros, sedosos, olhar amendoado fez com que Arquibaldo se lembrasse de Emir, um jovem delfim do Fórum. E agradou-se da moça, de gestos recatados, sinceros olhares. A festa do casamento foi suntuosa para os padrões da época.
Arquibaldo cumpriu religiosamente o que a mãe havia dito.
            Pouco mais de um ano após o enlace, nasceu Arquibaldo Júnior, para alegria dos avós, principalmente para Maria Engrácia.
            Arquibaldo Júnior cresceu saudável, porém ao chegar no primeiro ano de idade, Maria Engrácia começou a notar que o menino gostava muito de flores e de brincar de casinha com a filha de uma das empregadas.
            A história meio que se espalhou, pois nas altas rodas e no seio da criadagem, não se falava em outra coisa. Em vão Maria Engrácia presenteava o menino com bolas, carrinhos, espingardas de pressão...inútil. Júnior gostava de brincar de  papai-mamãe e insistia em ser a mãe.
            Arquibaldo pai, resolveu, a pretexto de um curso na magistratura francesa, mudar-se para Paris. Há muito ansiava em visitar e até se estabelecer na cidade azul, berço da boemia.
            A mulher de Arquibaldo e o Júnior ficariam por enquanto na mansão dos pais em Cambucari. Logo, logo, viria buscá-los.
            Até aqui cabe-me revelar, pois não sou alcoviteira.
            O que se fala em sociedade, deve permanecer nela.
            As provas do que narrei, deixo-as para os juízes condenarem ou não.

            Maura Soares, aos 19 de agosto de 2009 – 10.55h

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