sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Este pequeno conto ficou sem finalização.Hoje ao procurar sobre conto e crônica, achei este texto inacabado. Aí está.

AS TELHAS
Desenho de Cacildo Silva- artista plástico e poeta
Membro do Grupo de Poetas Livres, Florianópolis,SC 

A tarefa diária do escravo era fazer o barro, amassado com seus pés e moldar as telhas para a casa do senhor. Embora não chicoteasse os servos que trabalhavam as telhas, ainda sim o trabalho era como se fosse. Penoso, como todo trabalho braçal que exige força.
Julião era o seu nome, dado pelo patrão. Não possuía sobrenome, mas era conhecido, como os outros, de Julião Santos, sobrenome do seu dono.
Pelo registro de sua compra,  Julião deveria estar com 45 anos, mas aparentava mais, pois o encurvamento de suas costas denunciava os anos de sofrimento, de trabalhos forçados primeiramente na lavoura e, após alcançar a maturidade, no fabrico das telhas.
A região onde se situava a fazenda do coronel Santos era pródiga do barro que dava boas telhas, vasos e outros ornamentos.
Julião estava na equipe das telhas.
As ferramentas para a  fabricação das telhas eram as mãos e as coxas dos escravos.
Assim que o dia amanhecia, sem nem lavar o rosto do sono profundo pelo cansaço, Julião achegava-se na porta da cozinha para receber a ração diária que, para pessoas normais que fazem trabalho braçal, era ínfima. O patrão apostava na força de seus escravos. Embora fosse um homem que não castigava escravos no tronco, a comida que lhes dava era irrisória. Mesmo assim, Julião tinha forças para aguentar. Talvez o desejo de um dia ser livre o motivasse a receber toda a carga de trabalho e não se queixar, mas em seu íntimo, a esperança crescia a cada dia. Até lá, enquanto a alforria não chegava, Julião continuava a fazer as telhas.
Naquela manhã de abril, o calor ainda queimava a pele. Julião foi para a sua tarefa. Chegou ao local onde estava o barro a ser tirado, o capataz separou a sua cota e Julião foi para o seu canto trabalhar. Arregaçou a esfarrapada calça, colocando o barro na sua coxa e começou com suas habilidosas mãos a moldar a primeira telha do dia.
Até cerca de meio-dia, somente água os escravos recebiam. Era proibido conversarem. Somente olhares eram transmitidos entre si. Julião, em seu íntimo, cantava os cânticos de sua Mãe África. Lembrava-se do navio em que viera, com cinco anos, com sua mãe, seu pai e dois irmãos. Na fazenda nasceram mais dois. A mãe, além dos filhos, também tinha a incumbência de amamentar os filhos do patrão. Carlota ajudava a patroa nas lidas domésticas e, no final da tarde, olhava os filhos. Dura vida, dupla jornada e o sonho de ver seus filhos livres.
Enquanto a liberdade não acontecia, Julião sonhava fazendo as telhas. Após cada unidade, o objeto era colocado em uma forquilha para a secagem. O temperamento calmo do escravo possibilitava a contemplação do seu trabalho e ele gostava do que fazia, pois caprichava no acabamento. Ás vezes recebia crítica pela demora em cada telha e, de cabeça baixa, dizia que gostava do trabalho e procurava fazer bem feito. O capataz, após alguns dias de admoestação, deixou-o em paz. Já havia conversado com o coronel e este lhe havia dito que Julião era um bom escravo, que ele o deixasse sossegado, pois desempenhava um bom trabalho e suas telhas eram as mais bem feitas.
Julião sonhava, antevia um futuro melhor para si, Maria e dos pequenos. Não sabia que no Brasil um movimento abolicionista estava sendo preparado para que aqueles seres pudessem, enfim, ganhar suas liberdades.
A notícia final, da assinatura da Lei Áurea, caiu como uma bomba na fazenda do Coronel Santos. De há muito ouvia conversas aqui e ali, até que o fato se concretizou. Era um homem bom, mas era escravocrata, um ser pernicioso no olhar dos abolicionistas.
Finalmente aconteceu. Santos teve que libertar seus escravos.
- E agora? Estou livre, disse Julião, com a carta de alforria nas mãos. Abraçou Maria e as crianças.
Maria, porém, não sorria. Abraçou seu homem e ficou quieta.
- O que tens, Maria? Tantos anos para a liberdade e estás quieta?
        Maria, olhos marejados de lágrimas, disse:
        -Julião, como viveremos? Pelo menos tínhamos o que comer na casa do sinhô. Não temos nenhum casebre pra ficar, pois vivemos até agora na senzala. O pouco que vestimos o sinhô dava.  O que vamos comer, Julião? Não temos braça de terra pro plantio.
        - A gente arruma. Já ouvi dizer que agora a gente pode trabalhar e ganhar pelo trabalho.
        - Mas quem vai nos empregar, Julião?
        - Deus proverá, disse Julião.
        - Não tenho a fé que tens, marido.
        - Meu finado pai dizia que Deus quando fecha uma porta abre uma janela. Então, mulher, ora pros nossos orixás e vamos ter o que comer, o que vestir, onde dormir.
        Alguns dias após Julião haver recebido a carta de alforria, preparava-se para ir embora com a família.
        Na casa grande o patrão, desolado, estava em reunião com os filhos tentando resolver como ficaria a fazenda sem os escravos.
        Um dos filhos argumentou que o pai poderia contratar os escravos melhores e mandar embora os outros; assim o fabrico das telhas não sofreria continuidade.
        - Pai, o senhor pode ficar com o Julião e a família dele.Os meninos estão grandes e podem ajudar e até a Maria também. Além da família do Carlos, que são em cinco, do Ambrósio, que são em seis.Com quinze pessoas o senhor pode ir levando até conseguir trabalhadores mesmo pra aumentar a produção. Quando ao canavial havia muita gente à procura de emprego, gente branca que também estava precisando trabalhar pra se manter.
        E assim aconteceu. A fabricação das telhas continuou, agora num ritmo mais acelerado. Os empregados ganharam um pequeno terreno pra construir cada qual a sua maloca.
        O Senhor, ao cabo de 3 meses, viu sua produção aumentar, com pedidos de telhas, pois o povoado começava a crescer.
        Julião, com a telha nas coxas, olha para a mulher que também havia entrado no batente e sorri.
        - Não disse, Maria? Com Deus é assim. Ele não erra.

        Maura Soares, finalizado em 02 de setembro de 2011

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